MONTEIRO LOBATO: LITERATURA INFANTIL E AS VOZES POLIFÔNICAS EM MEMÓRIAS DE EMÍLIA

Autores/as

  • Nara Souza dos Santos Fundação Educacional de Ituverava
  • Lisângela Aparecida Guiraldelli Fundação Educacional de Ituverava

DOI:

https://doi.org/10.3738/1982.2278.2765

Palabras clave:

Monteiro Lobato, Emília, Literatura, Polifonia.

Resumen

RESUMO: A literatura infantil exerce grande influência no mundo e na vida das crianças por se tratar de um recurso de socialização, possibilitando às crianças interagir com o meio em que vivem, pois a literatura não é neutra e sempre exercerá sobre as pessoas alguma forma de ideologia. Monteiro Lobato (1882-1936), pioneiro da literatura infantil no Brasil, em suas obras, usa de metodologias para que seja possível reconhecer a necessidade de trabalhar a literatura, para que se possa, por meio dela, exercitar a noção de escolha pela própria criança. Sendo assim, nada melhor que trabalhar de uma forma mais lúdica e, é o que Lobato faz em sua obra Memórias de Emília, em que usa a boneca para expor um recurso da linguagem que Bakhtin coloca como Polifonia. Ao usar esse fenômeno, é possível identificar algumas perspectivas ideológicas presentes na literatura de Lobato que constrói sua narrativa sob consciências ideológicas implícitas nas personagens. Ao analisar Memórias de Emília o processo polifônico, ou seja, as várias vozes no interior da narrativa, os diversos conteúdos do nosso contexto social, que são unidos discursivamente por meio da realidade social, com discursos que divergem entre si e tecem diálogos com interação social na narrativa, são percebidos e identificados. Afinal, Memórias de Emília é um romance polifônico justamente por ser uma história que apresenta diversas vozes sociais. Palavras-chave: Monteiro Lobato. Emília. Literatura. Polifonia. SUMMARY: Children's literature has a great influence in the world and in the lives of children by being a socialization feature, enabling children to interact with the environment in which they live, because literature is not neutral and it is always exercise on people some form of ideology. Monteiro Lobato (1882-1936), a pioneer of children's literature in Brazil, in his works uses methodologies to recognize the need to work with literature, so that we can, through literature, exercise the notion of choice by the child. Thus, Lobato works in playful way in Memórias de Emília, in which he uses the doll to expose a feature of language that Bakhtin calls as Polyphony. Using this phenomenon, it is possible to identify some of the ideological perspectives presents in the literature of Lobato who builds his narrative under ideological consciousness implied in the characters. Analyzing Memórias de Emília, the polyphonic process, that is, the multiple voices in the interior of the narrative, the various contents of our social context, that are linked in a discursive way through social reality, with discourses that diverge among themselves and weave dialogues with social interaction in the narrative, are realized and identified. After all, Memórias de Emília is a polyphonic novel because it is a story that presents several social voices. Keywords: Monteiro Lobato. Emília. Literature. Polyphony. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como tema a literatura infantil, Monteiro Lobato e as Memórias de Emília. Monteiro Lobato foi um grande representante do gênero literatura infantil; um historiador e pioneiro nessa arte com histórias e personagens marcantes. O autor foi criador de grandes obras que marcaram a vida de muitas crianças, entre elas o Sítio do Pica Pau Amarelo, que é a mais conhecida por seus personagens marcantes. Entre esses personagens existe uma boneca sem trava na língua e sem filtro, que faz com que a literatura de Monteiro Lobato não seja neutra, que faz com que os sentidos das histórias sejam atribuídos pelos leitores de acordo com o que o leitor conhece de seu meio social. A literatura tem papel fundamental na vida das pessoas e faz com que a vida se torne humanizada podendo, por meio dela, igualar as classes sociais. Ela permite que a criança possa sonhar acordada, perante o lúdico na arte literária, dando a possibilidade de viajar o mundo através das histórias. Como parte importante na vida das crianças, a literatura infantil faz com que elas aprendam e adquiram voz ativa em meio à sociedade e tenham sempre um olhar crítico e reflexivo sobre as ocasiões que, muitas vezes, o mundo lhes impõe como únicas e verdadeiras. Assim, a literatura torna-se direito de todos, como os bens de consumo essenciais para a vida de cada cidadão como casa, comida, música e arte e, acima de tudo, para o bem cognitivo A literatura faz com que as crianças adquiram pensamentos e questionamentos diversos e uma visão de mundo diferente, e procura estimular desde muito cedo o senso crítico, por exemplo, nas crianças para que elas não cresçam achando que a vida tem um sentido único. Por isso, o livro Memórias de Emília, de Monteiro Lobato, busca não se prender a um sentido único, ajuda a compreender que a literatura infantil é importante, exerce grande influência sobre as crianças, pois Monteiro Lobato foi o pioneiro na literatura infantil brasileira e criou personagens como a boneca Emília que estimula e despertar o senso crítico nas crianças através de suas memórias. Emília, uma boneca de pano com suas memórias, possibilita aos leitores viajar pelo mundo por meio de histórias e lugares inusitados humanizando as crianças ludicamente. Parte desses princípios a importância de se deixar viva a memória das crianças e fazer com que elas busquem definir a vida e o sentido que elas desejam. Ao criar sua personagem, Monteiro Lobato deu à boneca de pano personalidade forte, pensamentos e atitudes próprias que fazem despertar o lado crítico do leitor. O presente trabalho tem como objetivo analisar como a literatura infantil e seus personagens podem ajudar as crianças a adquirir autonomia em seus pensamentos e formarem conceitos reflexivo e de liberdade para suas decisões futuras. Para que possa formar o senso crítico a literatura traz recursos como a polifonia: são as vozes que influenciam na formação ideológica de cada individuo. A escolha de Monteiro Lobato como autor e a sua obra Memórias de Emília para contextualizar o trabalho foi devido ao desenvolvimento que o autor dá às suas histórias e personagens e que nos dá a oportunidade de construir, sobre eles, dimensões e possibilidades de sonhar e de questionar o mundo a nossa volta. É à personagem Emília, uma boneca de pano, que Lobato atribui características marcantes, que o autor faz sátiras, faz críticas ao mundo e à língua e dá voz ao brinquedo, e essas várias vozes criam imaginação e questionamentos no leitor O texto está organizado de maneira que possamos perceber na obra Memórias de Emília, noções de polifonia relacionadas com a questão do senso crítico e como o uso das diversas vozes presentes nas personagens de Emília, Visconde, Narizinho, Tia Anastácia etc. que permeiam a obra de Monteiro Lobato e ajudam a construir os diálogos e as ideias. As análises partiram desses usos polifônicos. LITERATURA Segundo Souza (2006), ao pensarmos em literatura temos que ter em mente algo egocêntrico, que independe do fator cultural de cada pessoa, pois nada é óbvio e a literatura cria situações para que sejam levadas ao questionamento e à imaginação de cada um, o que fica restrito ao conhecimento de cada pessoa, pois a literatura é algo muito amplo. Para o autor, há a necessidade de se criar teorias para definir o que chamamos de metodologia da literatura, ou seja, o estudo da literatura em si. Enfim este segundo imaginário parte do princípio de que a literatura é objeto de uma problematização, de um questionamento, apto a revelar a superficialidade da atitude para a qual ela corresponde apenas a uma noção difusa e culturalizada, sendo óbvio, portanto. (SOUZA, 2006 p. 6) De acordo com Máximo (2014), pelo fato de a literatura ser algo abstrato há diversas interpretações, e esse fato leva a considerá-la como algo ideológico da formação leitora de cada um. Considerando que a parte imaginativa é característica da literatura, segundo Máximo (2014), temos que ter em mente que ela é uma ficção e, portanto, nem sempre é verdade; porém, é questionável sendo o texto literário formado por conceitos, regras e tendências. Por conta da não aceitação desses conceitos, regras e tendências, algumas vezes, a sociedade e as pessoas que entram em contato com tal conhecimento literário podem gerar certo sentimento de repulsa por ela. A literatura pode ser considerada algo que não é prático, pois a sua interpretação cabe a cada um de forma que ela não se torne objetiva. Contudo, o fator social influenciará tanto a obra, no momento de sua criação, quanto a sua recepção - como já mostrado acima, toda Literatura é social. As distintas Correntes mostram pontos de vistas diferentes no que tange ao que a obra tenha de Culturalistas etc. para considerarem a obra sobre seus moldes teóricos. Vai depender do que mais lhe chamam atenção, se são a forma, o conteúdo e como as mesmas se relacionam reproduzindo ou não uma realidade. E assim, surgem também necessidades de estudar a obra sobre teorias distintas. Com a industrialização surgiram os Estudos culturais, ou seja, a própria condição social exige novos pontos de vista para a crítica (os mesmos podem adquiri-los ou não). (MÁXIMO, 2014, p. 4) Já de acordo com Cândido (2004), quando pensamos em literatura o conceito quase sempre se volta para livros escritos, o que deixa óbvio. Porém, o texto literário é toda forma de arte, pois é algo muito amplo e podemos considerar como literatura, além de textos escritos, a pintura, a escultura, as músicas, as lendas folclóricas, as piadas, ou seja, toda forma de ficção ou drama no meio cultural de uma sociedade. Sendo a literatura uma forma universal de manifestação artística, então não há possibilidade remota de ficar excluída das nossas vidas em todos os níveis e modalidades, seja entre pessoas analfabetas ou eruditas. Podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. (CÂNDIDO, 2004 p. 17) Por ser pensada como ferramenta de socialização, a literatura está inserida no currículo das escolas como proposta intelectual e afetiva e, segundo Cândido (2004, p. 17.), “a literatura confirma e nega, propõe e denuncia apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas”. Considerando que a literatura é tida como universal e para todos, não podemos deixar de reconhecer como parte importante dessa literatura aquela que é voltada para o público infantil, ou seja, a literatura infantil. A seguir, um breve esboço. Literatura Infantil A Literatura Infantil para Cademartori (2010) tem duas vertentes na sociedade: a do gênero e a da educação. Como gênero literário ela é considerada modesta e na educação assume o papel de formadora de leitores. Ela ganha muito no quesito linguagem, pois é trabalhada sempre de acordo como um público ou uma faixa etária para qual a leitura está sendo dirigida. Essa linguagem pode ser verbal, não verbal ou sincrética e isso estimula a fantasia. A fantasia e os efeitos da literatura infantil têm caráter ideológico. A literatura infantil é digna do nome e estimula a criança a viver uma aventura com a linguagem e seus efeitos, em lugar de deixá-la cercada pelas intenções do autor, em livros usados como transporte de intenções diversas, entre elas o que passou a se chamar “politicamente correto”, a nova face do interesse pedagógico, quer que se sobreponha ao literário. (CADEMARTORI, 2010 p. 17) A manifestação da fantasia e da ficção oferece ao leitor condições de interpretar os saberes do mundo e da literatura com a capacidade de decifrar conceitos já estabelecidos. É isso que faz com que as crianças sejam capazes de formar seus próprios conceitos de literatura, os quais se tornam relevantes para sua formação. Segundo Cademartori (2010), assim como Lewis Carrol em Alice no País das Maravilhas, a literatura infantil de Monteiro Lobato foge do lógico, do habitual, oferecendo o que não é normal, o inusitado, o absurdo e a desordem, de modo que desestabiliza os saberes dos que eram convictos e a confusão leva à riqueza de sentidos dos fatos ocorridos, e o jogo de palavras leva ao lúdico. A visão que se tem da obra Alice no pais das Maravilhas, de Carrol, também pode ser projetada na obra de Lobato, uma vez que a desordem causada por Emília ao resolver escrever suas memórias faz com que possamos enxergar o lúdico através do modo como ela escreve o seu texto. De acordo com Camargo (2009), a apresentação que Lobato dá às suas obras cria uma confusão na cabeça dos leitores. Muito dessas semelhanças entre as obras, os autores e o modo da escrita se devem à base que Lobato teve sobre literatura infantil que fora europeia. Segundo Cademartori (2010, p. 33), a literatura “Possibilita a crença, identificar e examinar percepções e sentimentos, fatos, situações, formando assim conceitos (...), com a realidade concreta, por meio do que foi simbolicamente construída. A linguagem recorta o mundo, a literatura o modela”. Ao pensarmos na criança como leitora temos que ter em mente que são seres ativos, e não se pode deixar de estimulá-la para que se interesse sempre pelo novo e pelo que ela cria. Por isso, a necessidade de valorizar o inato da criança com sonhos, fantasias, lugares e seres imaginários. De acordo com Palo e Oliveira (2006), a ausência de abstração na literatura infantil é favorecida pela concretude e contiguidade do aprendizado de imediato, mas se falta abstração sobra às crianças instintos. Sendo assim, para Palo; Oliveira (2006), a literatura como função utilitarista tem como objetivo educar e, sobretudo, apreender, através do texto literário, a verdade social. No Brasil, a presença de Lobato é pioneira e evidente, pois a literatura infantil brasileira por muito tempo teve como destaque e prestígio Monteiro Lobato como precursor do gênero. De acordo com Cademartori (2010, p. 48), durante muito tempo a literatura infantil no Brasil viveu à sombra de Monteiro Lobato. Monteiro Lobato via o Brasil com um olhar de quem enxerga de fora (CADEMARTORI, 2010), e foi desse modo que ele fez sua literatura sempre inovadora; mesmo passando por várias fases e influências não perdeu sua essência. Suas obras visam sempre à investigação, o debate, o consenso de valores e sempre ultrapassam as expectativas dos leitores por romper com o que chamamos de moral oficial, com os preceitos religiosos e com as normas do governo. Ele estimula seus leitores para que criem conceitos sobre os padrões de suas obras e inventa para si conceitos próprios, explicita a realidade sobre a perspectiva social, política, econômica e cultural deixando sempre um espaço para a conversa entre escritor e leitor. Para Cademartori (2010), Lobato não considera as verdades como absolutas e seus personagens têm como grande marca a liberdade e a criatividade: A moralidade tradicional é dissolvida, o grande valor passa a ser a inteligência. A esperteza, habilidade maliciosa da inteligência, é igualmente valorizada. Emília, sua notável personagem, diz em certa altura da obra: “aprendi o grande segredo da vida dos homens: a esperteza. Ser esperto é tudo’’. É essa também a moral de muitas de suas fábulas. O mal reside na ignorância, no subdesenvolvimento, no pensamento encarcerado em valores absolutos. (CADEMARTORI, 2010 p. 54-55). A Literatura infantil no Brasil ganhou muito com as obras de Monteiro Lobato, como é conhecimento de grande maioria fez de sua literatura, durante muito tempo, única. Essa exclusividade, de certa forma, gerou uma defasagem do gênero por um tempo. Ao analisar as obras do autor, pode-se perceber que em Memórias de Emília ele dá ainda mais poder à boneca e ela tem o direito de se expressar ainda mais. Para Cademartori (2010), a literatura infantil faz com que as crianças sejam estimuladas a viver aventuras, pois a linguagem e os efeitos que são criados diante do sonho e da imaginação na literatura permitem estimular a leitura, para qualquer faixa etária, e a construção de diversos significados, e por isso pode-se atribuir às obras variadas interpretações. E isso não depende somente da idade das crianças, mas também, do meio social ao qual ela está inserida, “A moral de Lobato não é absoluta, está centrada em uma verdade individual. Suas personagens seguem uma moral de situação na qual a liberdade é o grande valor”, diz Cademartori (2010, p. 55.) para justificar a liberdade e a criatividade das personagens do Sítio do Pica Pau Amarelo. Monteiro Lobato, segundo Cademartori (2010), cria um vínculo entre a literatura e as situações sociais, sobre um olhar crítico e impiedoso para a realidade do país, e em desacordo com os problemas da sociedade brasileira. O escritor não se restringe somente à denúncia literária, à reflexão e à ação direta da oportunidade, Lobato também escandaliza, assusta e ameaça a realidade nacional da época. Suas características marcantes são dadas pelo risco da inovação, da aventura e da descoberta pessoal de cada um. O inovador na obra Lobatiana ganha cada vez mais força entre a literatura infantil e seu público. O mundo que Lobato cria em seus livros estabelece um reflexo do real, esse contexto permite ao leitor ter um olhar para o futuro e a consciência social de Lobato leva seu leitor a ver na literatura a importância no processo social. A visão de seus livros e o papel ativo da literatura permite que o leitor enxergue a literatura como agente de mudanças. A Obra Memórias de Emília De repente, uma boneca de pano resolve escrever suas memórias, mas como uma boneca de pano tem memórias? Pois não é que a Emília resolve ficar marcada para sempre na vida dos leitores recordando suas aventuras com o pessoal do Sítio. Através de suas memórias Emília conta as aventuras que passou na via láctea quando trouxe consigo Flor, um anjinho de asa quebrada, e tornou-se professora dele e entre os seus ensinamentos está o seu modo de enxergar a vida. Emília escreveu suas memórias com a ajuda de Visconde, memórias estas que ficaram marcadas para a eternidade na vida dos leitores de Monteiro Lobato. Desde que conquistou a fala Emília ganhou vida e liberdade. Uma vez liberta nos contempla com as suas filosofias de vida. Ela é uma boneca com personalidade e dona de si. Emília, com suas memórias, expõe seu modo determinado e teimoso de ver a vida. Com um coração cheio de sonhos, diante das dificuldades da vida, seu modo de expor as verdades “nada mais é do que uma mentira bem contada.” (LOBATO, 2007, p. 13), fazendo assim críticas às verdades absolutas que são introduzidas nas nossas crianças; e questionando sobre cada uma delas. Assim como a verdade ela, também, define a vida em suas Memórias: A vida senhor Visconde é pisca-pisca. A gente nasce, isto a gente começa piscar. Quem para dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais. A vida da gente senhor sabugo é isso. Um rosário de piscadas. Cada um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre. – E depois que morre? Perguntou o Visconde. –Depois que morre vira hipótese. É ou não é? (LOBATO, 2007 p. 17) E o que ela diz nada mais é que a verdade porque o que realmente somos é nada mais que as hipóteses. São esses os questionamentos que nos levam a considerar as memórias de uma boneca crítica e com voz ativa; e como uma boneca de pano tem percepções da vida, Emília faz da nossa imaginação questionamentos. Se não bastasse criticar, a boneca também filosofa “viver nada mais é que um dorme e um pisca e acorda”. Observa-se, dessa forma, que a obra de Monteiro Lobato estimula a criança a pensar e a criar seus próprios conceitos da vida. Memórias de Emília é uma obra que, muitas vezes, causa certo constrangimento nas pessoas mais conservadoras, pois a personagem foge do senso comum para definir os acontecimentos a sua volta. Observa-se na obra que é declarada a esperteza necessária para que se viva a influência que uma personagem tem sobre a outra. Lobato deixa bem claro essa esperteza quando Emília faz este comentário: [...] ser esperto é tudo na vida. Aprendi o grande segredo da vida com a vida [...] a esperteza! Ser esperto é tudo (ela se refere neste momento a Visconde a maior vítima de sua esperteza). Quem fez a aritmética? Você. Quem vai ganhar a fama? Eu. (LOBATO 2007, p. 64) Somos presos às convenções impostas por este ou por aquele propósito. Emília nos chama a sair do convencional, pois uma vez presos às tradições somos condicionados a não deixar novas marcas e a não nos impulsionar a um novo olhar sobre o pensar, o refletir e as formas de idealizar o mundo a nossa volta. As críticas de Emília à língua são muito fortes, pois para ela a língua e sua ambiguidade de significados são os maiores motivos dos problemas que acontecem no mundo; diante das variedades de significados das palavras é que acontece a desordem do mundo. “Eu penso que todas as calamidades do mundo vêm da língua. Se o homem não falasse tudo correria bem como os animais que não falam: [...] A língua é a desgraça da terra”. (LOBATO, 2007, p. 20) Ela vive a vida plenamente de modo que sua memória possa ser lembrada como alguém que fez a diferença. Lobato, no decorrer da obra, faz com que Emília seja realmente livre, crítica e bem objetiva fazendo com que pensemos no que tem real sentido de liberdade de expressão. Com personalidade forte e mandona, Emília faz de Visconde escriba de suas memórias e o deixa responsável por escrevê-las. Ele escreve coisa que encanta e desencanta a boneca ao mesmo tempo. O fato de Emília não se omitir faz de suas memórias, assim como as outras obras de Monteiro Lobato, uma obra bem crítica, e a presença do visconde põe em prática o que a Emília caracteriza como a esperteza, pois ele não é mencionado como autor de sua obra e passa a viver sempre à sombra da boneca, que ganha a fama pelas memórias, mas, na realidade, em sua grande maioria quem as fez foi o próprio Visconde. Assim como qualquer pessoa Emília tem em seus momentos de fúria atos que fazem com que ela tome atitudes preconceituosas com tia Nastácia, por exemplo, por ter deixado o anjinho sozinho. “Não posso falar nessa negra beiçuda que o sangue me vem à cabeça, Visconde! Perdemos a Florzinha das Alturas só por causa de tal “sacrilégio” que a burrona inventou! Impossível conformar-me com a perda do meu anjinho”. (LOBATO, 2007, p. 76). E numa atitude de arrependimento, Emília tende a se redimir exaltando a importância da tia Nastácia perante o sítio. Lobato ressalta com essa atitude que, mesmo sofrendo muito, a raça negra tem um grande papel na sociedade. O autor não deixa de mostra a sua importância: Tia Nastácia, essa é a ignorância em pessoa. Isto é ignorante, propriamente, não. Ciência e mais coisas dos livros ela ignora. Completamente. Mas nas coisas práticas da vida é uma verdadeira sabia. Para o tempero do lombo, um frango assado, um bolinho, para curar uma cortadura, para remendar meu pé quando a macela está fugindo, para lavar e passar a roupa- para as mil coisas de todos os dias, é uma danada! (LOBATO, 2007 p. 90) No final de todas as suas memórias, Emília se assume como uma sonhadora, pois ela começa a narrar o que seria sua consagração internacional: uma viagem a Hollywood na qual ela tem diálogos com Dom Quixote, Shirley Temple e outros personagens e teria a sua história contada pelo estúdio da Paramount. Ela enaltece seu inglês e o fato de conhecer pessoas famosas. Seus sonhos tomam proporções hilárias e entra em suas memórias o que ela deseja que aconteça. Vamos escreva! - disse ela -como poderei escrever uma história que eu não sei? Nunca estive em Hollywood, nem nunca você me contou essa passagem. - E que tem isso seu bobo? Eu também não estive lá e estou contando tudo direitinho. Quem tem miolo não se aperta. (LOBATO, 2007, p. 84) Emília escreve suas próprias impressões sobre si mesma e sobre os personagens do Sítio do Pica Pau Amarelo, define sua vida antes de aprender a falar e faz considerações a partir do momento que ela começa a ver o mundo através das notícias de jornal do dia a dia a sua volta para concluir que antes ela era feliz. Eu era uma criaturinha feliz enquanto não sabia ler e, portanto, não lia os jornais. Depois que aprendi a ler e comecei a ler os jornais, comecei a ficar triste. Comecei a ver na realidade o mundo. Tanta guerra, tantos crimes, tantas perseguições, tantos desastres, tanta miséria, tanto sofrimento... Por isso acho que o único lugar no mundo aonde há paz e felicidade é no sítio de dona Benta. Tudo aqui acontece como em sonho [...] só faz duas coisas brincar e aprender [...]. (LOBATO, 2007, p. 89) A escolha da personagem Emília e da obra Memórias de Emília se justifica pelo fato de ser uma boneca de pano, simples brinquedo, que pertencia a uma criança, Narizinho, e que representa o universo infantil. Sua simplicidade remete para a necessidade de olhar para nossas crianças como sendo capazes de criar seus conceitos como a Emília no decorrer da obra, pois podemos perceber, durante suas memórias que ela é contínua nos seus pensamentos, tem certa rebeldia e, assim como seu criador, luta contra as injustiças no mundo e isto fica cada vez mais evidente no decorrer da obra. Aspectos da Obra A obra Memória de Emília faz referências a uma base teórica da literatura que desperta a atenção dos jovens e das crianças para a leitura do mundo. Segundo Barthes (1989 apud SILVA 2015a, p. 46), a obra de Monteiro Lobato acompanha o que a literatura grega chama de Matheis, Mimiseis e Semiosis, ou seja, saberes, representação e signos que são conceitos que tornam a literatura mais ampla com poesias, sugestões, lacunas, metamorfoses e polissemias. A literatura é considerada por Deluze (1997, apud SILVA, 2015a) como inovadora e está sempre em constante movimento, pois cada leitor tem uma percepção da obra, o que a torna flexível. Pensando assim temos que ter a consciência de que a literatura é de fundamental importância para a formação crítica e pensante da criança na sociedade. A função formadora ? A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial. [...] Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica, [...] ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela. [...] Dado que a literatura ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos seus fins, pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem freqüentemente aquilo que as convenções desejariam banir. [...]. É um dos meios por que o jovem entra em contato com realidades que se tenciona escamotear-lhe. (CÂNDIDO, 2002, p. 83 apud SILVA, 2015a.) De acordo com Cândido (2002, p. 85 apud SILVA, 2015a), a literatura tem o poder de transformar o ser pensante, pois através da leitura constroem-se valores e promove-se a reflexão. Já na literatura infantil a principal característica é o imaginário. Segundo Silva (2015a), esse imaginário faz com que as crianças construam seu próprio mundo criando sua própria linguagem de forma geral. Ao refletirmos sobre a obra Memórias de Emília podemos ver o caráter imaginário que o autor cria sobre seus personagens. Uma boneca de pano que fala por conta de uma pílula falante, um sabugo de milho que, além de falar, é intelectual. No decorrer das histórias podemos questionar de quem são as memórias visto que o visconde escreveu boa parte delas. - Sabe escrever memórias Emília? – repetiu o Visconde, ironicamente. ? Então isso de escrever memórias com a mão e a cabeça dos outros é saber escrever memórias? ? Perfeitamente Visconde! Isso é que é o importante. Fazer coisas com a mão dos outros, ganharem dinheiro com o trabalho dos outros, pegarem nome e fama com a cabeça dos outros: isso é que é saber fazer as coisas. Ganhar dinheiro com o trabalho da gente, ganhar nome e fama com a cabeça da gente, é não saber fazer as coisas. Olhe visconde, eu estou no mundo dos homens há pouco tempo, mas já aprendi a viver [...]. (LOBATO, 1970, p. 123) A exploração do homem pelo homem que está à mostra na obra nada mais é que uma crítica ao capitalismo, o homem como mercadoria do homem. A exploração apontada pelo autor destaca as limitações que o poder econômico impõe sobre uma classe menos favorecida. Sendo assim, a intenção da obra é de explicitar e transmitir aos leitores a vida sociológica e econômica do capitalismo imposto pelo social de cada um. Para Silva (2015a), quando Emília apresenta as coisas da terra para Florzinha das Alturas, ela mostra o poder das palavras para descrever ao anjinho todo conhecimento do mundo humano que ela julga ser certo. Emília compara a árvore com o que ela pensa ser alguns seres humano. “Árvore-dizia-é uma pessoa que não fala; que vive sempre de pé no mesmo ponto; em que em vez de braços tem folhas [...]”. (LOBATO 2007, p. 92) A comparação que a boneca faz da árvore parada nada mais é que uma crítica às pessoas estagnadas na vida e, assim com seu modo de falar, ela ensina o anjinho os diferentes significados da linguagem no mundo humano. A força das palavras mediante a representação com que Emília brinca com as mesmas faz com que a literatura apresente o valor semântico que cada palavra adquire e isso independe do contexto que ela está inserida. Silva (2015a) defende o que julga ser os três elementos fundamentais para a escrita do texto literário: os saberes; a representação e os signos, pois são eles que deixam a literatura de Lobato com um caráter não utilitarista e capaz de criar reflexões diferentes de pessoa para pessoa através do jogo de palavras. Devido a estes elementos a obra é classificada como romance polifônico, pois carrega consigo vozes que permeiam os diálogos, personagens com poder de argumentação que interagem entre si e apresentam, no decorrer da obra, um vocabulário acessível às crianças, jovens e adultos, despertando cidadãos reflexivos, críticos e privilegiando a criatividade e a razão. Sendo assim, faremos um breve panorama sobre a polifonia para que possamos relacionar a obra Memórias de Emília de Lobato com as vozes polifônicas presentes. POLIFONIA Bakhtin (2010 apud SILVA, 2015b), em seus estudos, destacou o conteúdo e a forma do romance. Sua percepção foca o estudo do gênero romanesco, com questões voltadas para os discursos contidos no romance. O autor observou que esses romances “estão unidos, discursivamente, por meio das esferas sociais, como um fenômeno pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal, o que significa encontrar diversos discursos (“eu” e “outrem”), através das vozes sociais que se articulam e interagem na narrativa. Segundo Bakhtin (2010, p. 74-75 apud SILVA, 2015b, p. 21): O romance é uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais. A estratificação interna de uma língua nacional única em dialetos sociais, maneirismos de grupos, jargões profissionais, linguagens de gêneros, fala das gerações, das idades, das tendências, das autoridades, dos círculos e das modas passageiras, das linguagens de certos dias e mesmo de certas horas (cada dia tem sua palavra de ordem, seu vocabulário, seus acentos), enfim, toda estratificação interna de cada língua em cada momento dado de sua existência histórica constitui premissa indispensável do gênero romanesco. E é graças a este plurilinguismo social e ao crescimento em seu solo de vozes diferentes que o romance orquestra todos os seus temas, todo seu mundo objetal, semântico, figurativo e expressivo. O discurso do autor, os discursos dos narradores, os gêneros intercalados, os discursos das personagens não passam de unidade básicas de composição com a ajuda das quais o plurilinguismo se introduz no romance. Bakhtin se dedicou, na literatura, às leituras das obras de Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881), e foi a partir das obras de Dostoiévski que Bakhtin definiu o que é um romance polifônico e desenvolveu o que é polifonia, considerando-a plurivocal, ou seja, com diversas vozes. Segundo Silva (2015b, p.25), quando há uma multiplicidade de vozes se confrontando há, então, uma ação do discurso do “eu” e do “outro” dentro da narrativa. Esses discursos se relacionam de forma dialógica, porque “fazem com que o discurso de outrem seja a voz que deve ser pensada como outra, ou seja, a voz que carrega o discurso de alguma instituição, a qual é regida pelo autor e inserida na narrativa pela voz autônoma das personagens” e isso resulta num processo polifônico e é o que se vê na obra Memórias de Emília. Dessa maneira, para Bakhtin, as vozes do passado se ligam às vozes do presente (universo social sem fim), assim, todo e qualquer discurso é permeado, atravessado por outras vozes. Para o autor não existe um enunciado original, que não esteja carregado de ideologia, crenças, valores, costumes de outro. Esses discursos e vozes, como já dito, pautam-se de maneira dialógica e o dialogismo, segundo Bakhtin (1986 apud Barros, 1994), é considerado como o princípio que constitui a linguagem e a condição de sentido de um discurso. Para o autor, o dialogismo tem sentido mais amplo, isto é, não é tido apenas como comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas sim como toda comunicação verbal de qualquer tipo que seja. Barros (1994, p.3) diz que: Em outros termos, concebe-se o dialogismo como espaço interacional entre o eu e o tu ou entre o eu e o outro, no texto. Explicam-se as freqüentes referências que faz Bakhtin ao papel do “outro” na constituição do sentido ou sua insistência em afirmar que nenhuma palavra é nossa, mas trás em si a perspectiva de outra voz. Assim, Barros observa que Bakhtin define o uso da polifonia como um recurso da língua para explicar a vida social por meio dos diálogos. De acordo com o Ferreira (1975), Polifonia é “sf. Mus. 1. Simultaneidade de várias melodias harmonicamente dispostas. 2. Composição de várias vozes. Polifônico”. Segundo Koch (1997), o termo polifonia pode ser definido como o fenômeno que, em um texto, faz serem ouvidas vozes que falam de perspectivas ou pontos de vistas distintos e que o locutor pode o não se identificar. Muitos pesquisadores discutem e interpretam o termo polifonia de diversas maneiras. Para Bakhtin, polifonia “não é um universo de muitas vozes, mas um universo em que todas as vozes são equipolentes, ou seja, consciências autônomas somadas às vozes plenivalentes que participam do grande diálogo do romance em pé de absoluta igualdade, sem se objetificarem ou perderem seu ser.” (FARACO, 2003, p. 75 apud SILVA, 2015b, p. 30). De acordo com Bezerra (2005, p. 194-195 apud SILVA, 2015b, p. 26): O que caracteriza polifonia é a posição do autor como regente do coro de vozes que participam do processo dialógico. Mas esse regente é dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria ou recria, mas deixa que se manifestem com autonomia e revelem no homem um outro ‘eu para si’ infinito e inacabável. [...] A polifonia se define pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço do romance, de uma multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis [...]. Assim, sobre a polifonia, diz que o discurso é tecido numa trama de várias vozes, uma vez que a voz do autor não sobressai à voz das personagens, pois as vozes das personagens são independentes na narrativa. A polifonia é característica dos romances que são marcados por vozes ideológicas e, muitas vezes, por meio destas várias vozes constroem-se pontos de vistas, compreensões, interpretações e opiniões diferentes. A polifonia tem uma relação recíproca entre falante e ouvinte, emissor e receptor. De acordo com Koch (2000, p.50), as palavras que se constroem são produtos de uma relação de troca entre falante e ouvinte, emissor e receptor, em que se molda o eu através da visão do outro criando, assim, a formação do eu de cada indivíduo dentro de um mesmo enunciado. Assim, o locutor é responsável pela apresentação e os enunciadores são responsáveis pelos diferentes pontos de vista. O produto ideológico reflete no sentido de trazer para narrativa o discurso de outrem vindo de alguma instituição social, e refrata no sentido de modificar a direção da realidade, uma vez que, medido pelo autor e trazido para a narrativa, o produto ideológico é refratado pela voz da personagem, sem perder sua essência ideológica (SILVA, 2015b, p.28). A perspectiva polifônica, dessa forma, apresenta uma relação autor-personagem bem mais complexa e profunda, uma vez que se percebe, na estrutura do romance, um intenso diálogo entre as vozes que representam diversas instituições (sociais, culturais, filosóficas, religiosas), para produzirem seus discursos manifestando seus pontos de vistas, e suas consciências acerca da realidade inacabada e em constante evolução, assim como é a própria linguagem (SILVA, 2015b). A seguir, tomando os conceitos de polifonia apresentados, serão identificadas e analisadas algumas vozes polifônicas presentes na obra Memórias de Emília. As vozes polifônicas No livro Memórias de Emília o diálogo que Lobato estabelece com o interlocutor é rico de vozes sociais que questionam vários assuntos, caracterizando o que na literatura é chamado de romance polifônico. Podemos enxergar nos personagens de Lobato as vozes embutidas que nos fazem questionar sobre as ideologias expressas em suas obras. Em Memórias de Emília ele dá a cada personagem um discurso com um objetivo de questionar. De acordo com Silva (2015b, p. 41-42): Na voz de Dona Benta ressoam outras vozes equipolentes: a voz da família, a voz matriarcal, a cultura erudita, a literatura canônica, o saber dos livros, da linguagem escrita; - Tia Nastácia é a voz do folclore, a voz do povo, os contos populares, as crendices, a culinária do povo brasileiro, a linguagem falada; - Tio Barnabé, assim como Tia Nastácia, é a representação da cultura popular, da linguagem falada, das crendices, e nele é ainda mais acentuada a característica do folclore do povo brasileiro e dos seres fantásticos que habitam nossas matas, como a Cuca, o Saci Pererê, a Mula sem Cabeça, o Boi Tatá, entre outros; - Emília é a personagem que mais representa a voz autoral, carregando consigo o discurso mais crítico de Lobato e da sociedade, um discurso ora liberal, ora capitalista, realista a ponto de muitas vezes chocar o leitor com suas mais sinceras definições. - Narizinho representa a voz do encanto, da curiosidade das meninas de sua idade, uma voz feminina que impera junto com as outras três vozes femininas da casa: Dona Benta, Tia Nastácia e a boneca Emília; - Pedrinho é a representação também da curiosidade, mas uma curiosidade mais marcante que a de Narizinho pelo fato dele ser um menino vindo da cidade que busca, nas férias no sítio de sua avó, as idealizações e aventuras dos meninos de sua idade; - Visconde de Sabugosa é a voz da ciência sem sombra de dúvidas. Ele é a representação científica dos livros, das definições dadas em nome da ciência e que sempre se opõe às crendices religiosas. No livro, a voz da literatura aparece no início, quando Dona Benta questiona Emília que resolve escrever suas memórias, pois a estrutura do texto memorial é o oposto do que a boneca está fazendo: - Mas, afinal de contas, bobinha, que é que você entende por memórias? Memórias são as histórias da vida da gente, com tudo o que acontece desde o dia do nascimento até o dia da morte. - Nesse caso - caçoou Dona Benta -, uma pessoa só pode escrever memórias depois que morre... - Espere - disse Emília. - O escrevedor de memórias vai escrevendo, até sentir que o dia da morte vem vindo. Então pára; deixa o finalzinho sem acabar. Morre sossegado. - E as suas Memórias vão ser assim? - Não, porque não pretendo morrer. Finjo que morro, só. As últimas palavras têm de ser estas: "E então morri...", com reticências. Mas é peta. Escrevo isso, pisco o olho e sumo atrás do armário para que Narizinho fique mesmo pensando que morri. Será a única mentira das minhas Memórias. Tudo mais verdade pura, da dura – ali na batata, como diz Pedrinho (LOBATO, 2007 p.12). O que Emília entende por memórias é uma reflexão sobre o gênero textual memorialístico, questionando sobre uma nova possibilidade e perspectiva para o texto literário, um novo olhar, de acordo com o discurso da boneca. A crítica que a boneca faz em relação à necessidade de se contar mentira justamente no gênero memorialístico serve de desculpa para justificar o fato de ela mesmo querer escrever suas próprias memórias, pois, de acordo com Emília, quem escreve memórias irá contar uma mentira, e com isso ela carrega a perspectiva do mentir para chamar a atenção do outro. Segundo Silva (2015b, p. 44), as vozes que são atribuídas à Emília marcam a não conclusão das escritas do texto de Lobato. Uma única voz marca o eu como discurso do outro, e os questionamentos ao gênero memorialístico na literatura são marcados pelo que ela diz ser falsas verdades, a voz crítica deve-se à personalidade forte da boneca que fica evidente na obra. - Verdade pura! Nada mais difícil do que a verdade, Emília. - Bem sei - disse a boneca. - Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais. Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta idéia do escrevedor. Mas para isso ele não pode dizer a verdade, porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha, para dar idéia de que está falando a verdade pura (LOBATO, 2007, p.12) Começar a escrever suas memórias é uma dificuldade que a boneca encontra dentro de uma perspectiva literária. A partir desta dificuldade ela critica no processo de aquisição da escrita, como acontece no decorrer da história. Visconde, neste momento, representa a voz da literatura tradicional, o que tem o conhecimento dos clássicos, o que ajuda a boneca indicando como começar a escrever. Ele propõe que ela comece a escrever de maneira clássica, inspirada em obras já conhecidas. - É que o começo é difícil, Visconde. Há tantos caminhos que não sei qual escolher. Posso começar de mil modos. Sua idéia qual é? - Minha idéia - disse o Visconde - é que comece como quase todos os livros de memórias começam - contando quem está escrevendo, quando esse quem nasceu, em que cidade etc. As aventuras de Robinson Crusoé, por exemplo, começam assim: Nasci no ano de 1632, na cidade de York, filho de gente arranjada etc. - Ótimo! - exclamou Emília. - Serve. Escreva: Nasci no ano de... (três estrelinhas), na cidade de... (três estrelinhas), filha de gente desarranjada... - Por que tanta estrelinha? Será que quer ocultar a idade? - Não. Isso é apenas para atrapalhar os futuros historiadores, gente muito mexeriqueira (LOBATO, 2007, p. 15) A crítica de Emília nesta parte chama atenção para o estilo de texto que não se difere de uma obra para a outra, todas têm início do mesmo jeito, não muda e aos historiadores que ela chama de mexeriqueiros. Instruída por Visconde de como escrever as memórias, Emília decide que ele vai escrever suas memórias: - Escute, Visconde - disse ela. - Tenho coisas muito importantes a conversar com Quindim. Fique escrevendo. Vá escrevendo. Faça de conta que estou ditando. Conte as coisas que aconteceram no sítio e ainda não estão nos livros. - A história do anjinho de asa quebrada serve? - indagou o Visconde. - Ótimo! Ninguém lá fora sabe o que aconteceu por aqui com o anjinho que cacei na Via Láctea. Conte isso e mais outras coisas. O que quiser. Vá contando, contando. - Mas assim as Memórias ficam minhas e não suas, Emília. - Não se incomode com isso. No fim dou um jeito; faço como na "Aritmética...". Disse e saiu correndo (LOBATO, 2007, p.17-18) A boneca fica reconhecida pelas suas memórias, mas quem escreve não é ela; portanto, ela adiquire fama sobre o trabalho do outro. Ela é quem tem a voz que ordena e que aprova ou não a escrita. Emília apresenta o plurilinguismo social no momento em que usa da força de trabalho do outro e passa a contar a partir da voz do outro suas memórias. De acordo com Bakhtin (2010a, apud SILVA, 2015b p. 46), a personagem traz consigo a criatividade da voz existente no cotidiano que permite que possamos, durante os acontecimentos, interpretar de forma variada os eventos. Já ao final da história, depois que Emília assumiu a escrita por não estar contente com o jeito como Visconde escreve, ela devolve suas memórias a Visconde: - Como cansa escrever! Estou com a mão doendo. O melhor é continuar com a munheca do Visconde. Foi à janela. Chamou: - É hora, Visconde! Venha correndo! O Visconde veio correndo. Já estou com os dedos doídos de tanto escrever - disse ela. - Continue as Memórias. - Em que ponto está? - Estou com a Shirley e o anjinho em Hollywood, levando Dom Quixote para a aldeia da Mancha, que pode ser em qualquer parte. Continue. O Visconde abriu a boca, espantado. Não estava entendendo coisa nenhuma. - Vamos, escreva! - disse ela. - Como poderei escrever uma história que não sei? Nunca estive em Hollywood, nem nunca você me contou essa passagem. - E que tem isso, bobo? Eu também não estive lá e estou contando tudo direitinho. Quem tem miolo não se aperta (LOBATO, 2007, p.84). Outra vez a voz da literatura aparece e Emília é questionada por dona Benta, não por ter sido Visconde quem escreveu suas memórias, mas pela boneca ter inventado passagens que não aconteceram no decorrer de sua história. Para dona Benta, esse tipo de gênero não é memória. Emília se justifica dizendo que: - Minhas memórias – explicou Emília – são diferentes de todas as outras. Eu conto o que houve e o que devia haver. -Se você inventa história é história não memórias portanto enquadra em outro gênero literário. - Então é romance, é fantasia [...]. (LOBATO, 2007 p.83). De acordo com Bakhtin (2010a, apud SILVA, 2015b, p.48), trata-se de plurilinguismo, uma vez que cada personagem desempenha um papel e, portanto, são vistos com toda diversidade social de linguagens, línguas e vozes individuais dentro da obra, que, como já mencionamos, são orquestradas por uma única voz: a voz autoral. É essa voz que dá vida ao romance polifônico, fazendo a ponte autor-narrador-personagens-leitor, num único fio condutor: o fio das consciências plurais, sem a presença de hierarquia entre elas: Pensando ainda. na influência das vozes no texto, não se pode deixar de fora as vozes da família e da instituição escolar presentes em Memórias de Emília. A socialização está integralmente ligada à questão familiar por meio das normas e valores impostos pela sociedade em que se está inserida e de acordo com os modelos de comportamento, ou seja, as experiências vividas no cotidiano x o saber formal da escola. Segundo Silva (2015b, p. 49), Emília carrega consigo essas duas vertentes do diálogo, as perspectivas familiar e da escola, pois ao mesmo tempo ela traz o aprendizado que adquiriu no dia a dia, construído no seu cotidiano no Sítio através de suas aventuras, e a troca de outras experiências familiares com os outros personagens que compõe seu universo: - Acho graça nisso de você falar em verdade e mentira como se realmente soubesse o que é uma coisa e outra. Até Jesus Cristo não teve ânimo de dizer o que era a verdade. Quando Pôncio Pilatos lhe perguntou: "Que é a verdade?", ele, que era Cristo, achou melhor calar-se. Não deu resposta. - Pois eu sei! - gritou Emília. - Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso. Dona Benta calou-se, a refletir naquela definição (LOBATO, 2007, p. 13) As perspectivas familiar e da escola ainda aparecem nos conceitos que Emília tem sobre a filosofia de vida e de mundo. As explicações que Emília usa para definir a socialização, segundo Berger e Luckmann (1985, p.175 apud SILVA, 2015b, p.50), são definidas como a construção social da realidade: E como sou filósofa - continuou Emília - quero que minhas Memórias comecem com a minha filosofia da vida. - Cuidado, Marquesa! Mil sábios já tentaram explicar a vida e se estreparam. - Pois eu não me estreparei. A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais. É, portanto, um pisca-pisca. O Visconde ficou novamente pensativo, de olhos no teto. Emília riu-se. - Está vendo como é filosófica a minha idéia? O Senhor Visconde já está de olhos parados, erguidos para o forro. Quer dizer que pensa que entendeu... A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre. - E depois que morre? - perguntou o Visconde. - Depois que morre vira hipótese. É ou não é? O Visconde teve de concordar que era (LOBATO, 2007, p. 16-17). Outro exemplo deste conhecimento familiar e escolar de Emília é quando ela faz uma metáfora do homem parado em que ela o compara com uma árvore para explicar ao anjinho o sentido da vida na terra visto por ela. Percebe-se também a representação da voz infantil em um olhar sobre o mundo. Esses conceitos de Emília podem ser atribuídos aos seus conhecimentos do mundo adquiridos durante suas aventuras no mundo do Sítio do Pica Pau Amarelo. - Mas por que essas tais árvores nunca saem do mesmo lugar? - "Porque têm raízes - explicava a Emília. - Raiz é o nome das pernas tortas que elas enfiam pela terra adentro. Bem que querem andar, as pobres árvores, mas não conseguem. Só saem do lugarzinho em que nascem quando surge o machado. - Que animal é esse? -Machado é o mudador das árvores, muda a forma delas, fazendo que o tronco e os galhos fiquem curtinhos. Muda-lhes até o nome. Árvore machadada deixa de ser árvore. Passa a ser lenha. Lenha. Repita. - É algum deus esse machado tão poderoso assim? Emília ria-se, ria-se... - Deus, nada, burrinho! É antes um diabo malvadíssimo, mas diabo sem chifres, sem cauda, sem pés de cabra, sem cabeça, sem braços, sem nada. Só tem corte e cabo [...] (LOBATO, 2007, p. 19). A relação com a linguagem também é explorada por Emília. Dessa forma, a boneca enuncia a perspectiva reflexiva da instituição escolar acerca do processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem na sociedade, o que nos leva a perceber uma relação autor-personagem na sua complexidade e profundidade, porque Lobato permeia a voz de Emília de várias perspectivas, uma vez que, para Bakhtin (2010b, apud SILVA, 2015b), na estrutura do romance polifônico, há um diálogo intenso entre as vozes que representam diversas instituições – sociais, culturais, filosóficas – dotadas dos próprios discursos, manifestando seus pontos de vistas e suas consciências acerca da realidade inacabada e em constante evolução, assim como é a própria linguagem, de acordo com Silva (2015b, p. 52). De modo geral, quando pensamos em perspectivas escolares, Lobato deixa implícito no livro a sua opinião referente às línguas e aos variados significados. Ele usa a boneca para impor sua voz de modo crítico e, ao mesmo tempo lúdico. No momento em que Visconde era narrador da história ele falava que Emília tinha um jeito diferente de ver e pensar o mundo, o que o autor definiu como “asneirinhas” (LOBATO, 2007, p. 22). Sendo assim, Lobato pensava que a socialização primária partia sempre da ideologia do discurso do outro, o que conforme já vimos é a ideia de Bakhtin (2009 apud SILVA 2015b. p. 54-55), e é o que acontece com o modo de Emília enxergar o mundo. - Todo o mal vem da língua - afirmava a boneca. - E para piorar a situação existem mil línguas diferentes, cada povo achando que a sua é a certa, a boa, a bonita. De modo que a mesma coisa se chama aqui de um jeito, lá na Inglaterra de outro, lá na Alemanha de outro, lá na França de outro. Uma trapalhada infernal, anjinho. (LOBATO, 2007, p. 22). A voz da cultura erudita pode ser observada quando dona Benta anuncia a chegada do Almirante Brown ao sítio: “Temos a honra de receber no sítio de vovó as crianças comandadas pelo Almirante Brown” (LOBATO, 2007, p. 27.), o que representa o conhecimento formal das personagens adquiridos com as experiências de Dona Benta durante a leitura de livros. Segundo Silva (2015b, p.57), a linguagem de Dona Benta caminha nesse viés da cultura erudita, porque ela cita o discurso de hospitalidade, de polidez que vem dessa perspectiva erudita. E como observa Faraco (2003, p. 82 apud SILVA 2015b, p.57), “nossos enunciados são sempre discursos citados, palavras que perderam as “aspas”, discursos de outrem, bivocalizados em nossos enunciados”. Observa-se também o embate entre duas perspectivas: a erudita, representada pela voz de Dona Benta, e a popular, representada na voz de Tia Nastácia: - Credo! -exclamou a preta. - Esses ingleses têm cada uma!... Bem diz Seu Pedrinho que eles são 'cêntrico'. - "Excêntricos, Nastácia - corrigiu Dona Benta. - E a criançada? Como está se comportando lá no pomar?" - "Nem sei, Sinhá. Não espiei ainda - nem tenho coragem de espiar. Estou só imaginando os 'horrores' [...] (LOBATO, 2007, p. 30- 31) As posições de Dona Benta e tia Nastácia ficam bem evidentes no trecho citado, mas, apesar da diferença de cultura, elas dialogam entre si. Lobato estabelece entre elas um coro de vozes que Bakhtin (2010b, apud SILVA, 2015b) chama de relação eu-outro como integração social. A utilização dos verbos ler, ensinar e explicar reforça a posição de dona Benta em relação à tia Nastácia. Tenho de dizer umas palavras sobre esta senhora. Dona Benta é uma criatura boa até ali. Só isso de me aturar, quanto não vale? O que mais gosto nela é o seu modo de ensinar, de explicar qualquer coisa. Fica tudo claro como água. E como sabe coisas, a diaba! De tanto ler aqueles livros lá do quarto, ficou que até brincando bate o Visconde em ciência (LOBATO, 2007, p. 90) A cultura popular é fundamentada sobre tia Nastácia que tem como base de sua formação as crendices, o folclore e o conhecimento de mundo que a acompanha no cotidiano, e os dito populares são frequentes em seus diálogos. Lobato representa o povo na personagem de Tia Nastácia. Quando, segundo Silva (2015b, p.58), tia Nastácia diz algumas de suas expressões como “cheia de bichas” e “lombriguentas”, traz o conhecimento da boca do povo, a voz popular. É a representação de uma perspectiva que está no cotidiano, que está repleta dos saberes que as pessoas adquirem com seus antepassados e que, posteriormente, passarão para os futuros familiares ou amigos. Acontece, porém, que quando uma criança quer vivamente uma coisa e não consegue dá de emagrecer, fica doentinha, cheia de bichas. E as crianças do mundo inteiro começaram a ficar doentinhas e lombriguentas de tanto desejo de virem ao sítio (LOBATO, 2007 p.24). Silva (2015b) observa que a voz de tia Nastácia é como um tecido de vozes em que o autor não se sobressai à voz da personagem, que adquire uma posição superior a autoral, ou seja, a representação da voz do povo firme e representada na personagem. Lobato não deixa de fora de seus diálogos nem mesmo a igreja, que ele cita em passagens na voz da boneca e que menciona Jesus Cristo e textos bíblicos para fazer alguma espécie de crítica a algo que ela havia definido a seu modo: Aquele Jesus Cristo que Dona Benta tem no oratório, pregado numa cruz, foi um. Os homens do seu tempo que só cuidavam de si, esses viveram ricos e felizes. Mas Cristo quis salvar a humanidade e que aconteceu? Não salvou coisa nenhuma e teve de agüentar o maior dos martírios. (LOBATO, 2007, p.88) Como já visto, fica assim definida a polifonia bakhtiniana como as muitas vozes, como um universo em que todas essas vozes estão equipolentes, ou seja, são autônomas somadas às vozes plenivalentes que interagem dentro de um grande diálogo proposto nessa obra por Lobato. Há também uma visão de colonizado e colonizador, quando o navio do Almirante Brown atraca no sítio não somente com crianças, mas também, com os vários personagens da literatura britânica: Peter Pan, de James Matthew Barrie, e Alice, de Lewis Carroll. Curiosamente, junto deles aparece Popeye, criação do norte-americano Elzie Crisler Segar. Esses personagens seriam resíduos da vida de Lobato no exterior? Segundo Silva (2015b), como se tratam de vozes de lugares distantes, da literatura inglesa e de desenhos animados são “vozes do passado que se misturam a do presente, há aí o que Bakhtin (2010b) chama de “grande diálogo do romance", o que corresponde às consciências plurais, à liberdade e independência que o autor, consciência das consciências, o regente do coro de vozes, dá às personagens”. A chegada de tantas pessoas ao sítio faz com que o diálogo das personagens se some e desperte as vozes das influências que convergem entre si: Enquanto os dois discutiam, Emília se atracava com Alice do País das Maravilhas, que também viera no bando. Alice estava torcendo o nariz a tudo e achando que aquele sítio não parecia digno de um anjinho. - "Uma casa velha, estas árvores tortas por aqui, aquele leitão lá longe nos espiando - então isto lá é morada digna de um anjinho caído do céu? Os anjos querem nuvens bem redondas. Se o levássemos para Londres, haveríamos de dar-lhe um palácio de cristal cheio de nuvens de ouro – ouro fofo bem macio." - A senhora está muito enganada - rebateu Emília. - O anjinho anda muito satisfeito por aqui. Tem se regalado de brincar. Outro dia me disse que estava enjoado de nuvens redondas e não trocava todas as nuvens do céu por este pomar. (LOBATO, 2007, p.34) Observando as personagens de Emília e Alice, ambas têm personalidade forte e marcante, são decididas, destemidas e desafiadoras nas suas ideias. Iria m se enfrentar em algum momento. Ambas fogem ao plano de criação autoral e vão além das expectativas de seus autores. No decorrer da história as influências do colonizador vão perdendo forças a partir do momento em que este começa a conhecer as paisagens do Brasil sob o olhar de Lobato (2007) e a provar as brincadeiras, as frutas, conhecer os lugares e o encanto e as descobertas começam a aparecer. Dona Benta, que representa a cultura erudita, também desempenha bem o papel de anfitriã para que o colonizador tenha sua ambientação no meio social brasileiro. - Tome este cafezinho - dizia ela, apresentando-lhe uma xícara. - Nada melhor do que o café para estimular os nervos e levantar o moral. Mas o abatimento do Almirante era enorme. Estava a pensar nas suas tremendas responsabilidades. (LOBATO, 2007, p.59) Memórias de Emília foi escrito em uma época em que o Brasil ainda vivia um período de escravidão, portanto, a voz da sociedade da época também é representada na obra. Emília carrega em alguns de seus diálogos a perspectiva da voz da sociedade escravagista e segregadora. A questão da cor e etnia na sociedade da época era muito valorizada e a diferença entre os negros escravos e os senhores brancos era grande. Esses trechos não devem ser tratados separadamente do contexto da história e do momento histórico no qual foram escritos, pois retratam um momento e foram, de forma sutil, criticados pelo autor na voz da boneca. No trecho a seguir, observa-se o sentimento de culpa de Emília sendo descarregado em tia Nastácia: Castigar, nada! - berrou Emília. - Todas as aves são de Deus e no entanto prendemos canários e sabiás nas gaiolas e comemos pombos assados sem que Deus se importe. Pensa que Ele fica o tempo todo prestando atenção nas aves do quintal do céu? Tem mais que fazer, boba. Além disso anjo é coisa que há lá por cima aos milhões. Um de menos, um de mais, Deus nem percebe. Perdemos o anjinho por sua culpa só. Burrona! Negra beiçuda! Deus que te marcou, alguma coisa em ti achou. Quando ele preteja uma criatura é por castigo. Tia Nastácia rompeu em

Biografía del autor/a

  • Nara Souza dos Santos, Fundação Educacional de Ituverava
    Graduada em Pedagogia pela FFCL e pós-graduanda do curso de pós-graduação em Educação Especial com ênfase em Deficiência Intelectual na FFCL.
  • Lisângela Aparecida Guiraldelli, Fundação Educacional de Ituverava
    Doutora e mestre em Estudos Linguísticos pela UNESP/ São José do Rio preto. Docente na FFCL nos cursos de Letras e Pedagogia. Coordenadora de área do Subprojeto de Letras do PIBID/FFCL.

Publicado

2018-04-30

Número

Sección

Artículos

Cómo citar

MONTEIRO LOBATO: LITERATURA INFANTIL E AS VOZES POLIFÔNICAS EM MEMÓRIAS DE EMÍLIA. (2018). Nucleus, 15(1), 493-514. https://doi.org/10.3738/1982.2278.2765

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